Candidatos à matéria escura

 

A natureza da matéria escura é um mistério que tem fascinado a comunidade científica desde a década de 1930, quando Fritz Zwick propôs a sua existência para resolver o problema da “massa faltante” em aglomerados de galáxias. Apesar de inúmeros dados observacionais que indicam a sua existência, até o presente pouco se sabe a seu respeito. Atualmente, o modelo ΛCDM, considerado modelo padrão cosmológico, tem como preferência uma matéria escura fria não-bariônica, provavelmente uma partícula elementar exótica, não descrita pelo modelo padrão das partículas elementares. Neste campo, não há falta de ideias ou imaginações, de forma que há uma grande quantidade de candidatos à matéria escura.

Até que a matéria escura seja detetada e suas propriedades estudadas, não se pode descartar ideias novas, como teorias alternativas que não tem na matéria escura a solução para o caso da massa faltante, mas sim na necessidade de se modificar a lei da dinâmica newtoniana.

Figura 1 – Candidatos a partículas de matéria escura

Crédito da Figura: Gianfranco Bertone 

Disponível em: http://www.lhep.unibe.ch/schumann/docs/hd/hd_day2.pdf

        

Historicamente, diversos candidatos apareceram como sendo promissores para resolver o problema da “massa faltante” levantado por Zwick. Devemos lembrar que na década de 1930, os conhecimentos que tínhamos na área da física de partículas eram bem tímidos se comparados ao que temos atualmente, portanto os possíveis candidatos razoáveis nessa época eram objetos bariônicos com uma massa muito elevada, os chamados objetos maciços compactos do halo (MACHO's, na sigla em inglês), que estão na condição de objetos “extremamente grandes”.

 O desenvolvimento da física de partículas trouxe grandes avanços também na indicação de possíveis candidatos a partícula de matéria escura. Dentro do modelo padrão das partículas elementares, os neutrinos são os únicos candidatos atualmente viáveis, porém eles sozinhos não dão conta da quantidade de matéria escura presente no Universo. Dentro da física de partículas, os outros candidatos deveriam ser partículas subatômicas previstas em modelos além do modelo padrão, como os neutralinos mais leves que são previstos no modelo padrão supersimétrico mínimo. Estes candidatos estão na condição de “extremamente pequenos”, sendo a classe mais conhecidas destas partículas as chamadas WIMP's (weakly interacting massive particles), que são partículas massivas que interagem somente via interação fraca, como os neutrinos.

Caso as partículas elementares sejam responsáveis pela matéria escura, elas teriam sido criadas no Universo primordial e hoje seriam relíquias desse passado remoto. Essas partículas podem ser classificadas pelo mecanismo de sua produção:

  • Mecanismo térmico. Nesse mecanismo, as partículas foram criadas termicamente no Universo primordial, quando a temperatura era bem alta. Eram abundantemente criadas, mas eficientemente aniquiladas (em pares) em partículas ordinárias, até  que com o resfriamento do universo, a taxa de criação diminuiu consideravelmente. Por outro lado, com a baixa densidade, as aniquilações também foram diminuindo, de forma que essas partículas existem até hoje, o que justifica chamarmos de  relíquias térmicas. A maioria dos WIMP’s, como os neutralinos  e os neutrinos são seus representantes mais conhecidos.
  • Mecanismo não térmico. Nesse mecanismo, as partículas foram criadas fora do equilíbrio térmico no Universo primordial e não podem ser consideradas relíquais térmicas.  Os áxions e algumas partículas exóticas, como as wimpzillas, são seus representantes mais conhecidos.

De acordo com esses mecanismos de produção da matéria escura, as restrições nas suas propriedades  podem variar consideravelmente. Por exemplo, os wimpzzilas podem ter uma  massa um trilhão de vezes maior do que a de um típico WIMP, sem violar os vínculos observacionais, como a densidade de relíquia.

Por outro lado, independentemente do constituinte da matéria escura, se são partículas elementares ou objetos grandes, podemos classificar a matéria escura de acordo com a sua energia (ou temperatura) no momento de formação das galáxias em:

  1. Matéria escura fria. São partículas ou objetos com massa suficientemente grandes para se moverem com velocidades bem menores do que a velocidade da luz (velocidades sub-relativísticas), ou seja, são suficientemente lentas para permitir que a ação gravitacional as agrupe permitindo a formação de estruturas em pequenas escalas. Exemplos de partículas de matéria escura fria são os neutralinos, os áxions, as wimpzillas, etc.

  2. Matéria escura quente. São partículas com massa zero ou próximos de zero e se movem com velocidades relativísticas, ou seja, são suficientemente rápidas para não permitir que a ação gravitacional as agrupe e, como conseqüência, dificulta a formação de estruturas de pequena escala e favorece a formação de grande escala (o que não corresponde ao universo que observamos).  Exemplos de partículas de matéria escura quente são os neutrinos.

  3. Matéria escura morna. São partículas com velocidades semi-relativísticas, não tão lentas como as partículas de matéria escura fria e não tão rápidas como as partículas de matéria escura quente e é, portanto um caso intermediário entre a matéria escura fria e quente. Exemplos de partículas de matéria escura morna são os neutrinos estéreis e os gravitinos.

 

Embora atualmente vários candidatos á matéria escura tenham sido descartados, é interessante observar que há uma grande disparidade nas propriedades que estes candidatos apresentam. Uma delas é sua massa; enquanto os candidatos mais massivos (MACHO’s) apresentam massas aproximadamente de 104 MΘ (massas solares), os mais leves, no caso o áxion, possuem massas de aproximadamente 10-5 eV = 1,8 x 10-41 kg = 9 x 10-72MΘ. Uma diferença exorbitante de 75 ordens de grandeza! Essa enorme diferença evidencia o quanto não sabemos sobre as propriedades dos candidatos a matéria escura.

 

A matéria escura fria e os candidatos mais promissores

       

Conforme já mencionado acima, o modelo padrão cosmológico, conhecido como ΛCDM, assume que a matéria escura do Universo é fria. À partir desta suposição, o modelo consegue descrever com sucesso a formação de estruturas de grande escala, como galáxias e aglomerados de galáxias.

Lembrando que a palavra "fria" se refere à energia ou à temperatura do objeto no momento da formação das galáxias, o CDM pode ser classificado em duas classes: matéria escura fria bariônica e matéria escura fria não bariônica.

Lembrando que bárions são partículas constituídas de três quarks, como os prótons e nêutrons, elas são partículas tidas como ordinárias e constituintes fundamentais da matéria formada por átomos. Por outro lado, uma matéria não bariônica é, como o próprio nome diz, matéria não constituída de bárions. Elétrons, por exemplo, assim como os neutrinos, são partículas não bariônicas. No entanto, não é possível construir matéria com uma coleção de elétrons. Já os neutrinos podem ser candidaros à matéria escura, mas como são quentes e não possuem abundância suficiente para explicar a quantidade de matéria escura presente no Universo.
Por conta disso, atualmente os candidatos à matéria escura são frias e não bariônicas. Dentro dessas características, podemos citar o áxion e as partículas massivas interagindo fracamente, os chamados WIMP's.

À seguir, faremos uma breve descrição dessas partículas.

 

O áxion

O áxion é um bóson de massa muito pequena, com velocidade não relativística e com mecanismo de produção não térmico, ou seja, não estava em equilíbrio térmico no inicio do Universo. Ele é um bom candidato à partícula da matéria escura fria, pois é neutro, interage apenas fracamente com as demais partículas (o que torna sua detecção muito difícil) e poderia ter sido produzindo em abundância no Universo primordial.

Proposto originalmente por Roberto Peccei e Helen Quinn em 1977 para resolver um problema da cromodinâmica quântica (QCD, na sigla em inglês) chamado de violação da Carga – Paridade (CP), o áxion surge na tentativa de explicar por que a interação forte parece obedecer a certa simetria chamada "simetria CP". Entre outras coisas, a simetria CP impediria o nêutron de ter um grande momento de dipolo elétrico (a grosso modo, o  momento de dipolo elétrico é a medida da distribuição de cargas positiva e negativa dentro do nêutron; lembre-se que o nêutron é formado por três quarks, que são carregados eletricamente).

Áxions poderiam ser detectados através de um efeito que converte os mesmo em fótons de raios-X em uma região onde há um campo magnético.

 

Figura 2 - Figura esquemática da conversão de um áxion em um fóton dentro de um campo magnético

Crédito da figura: (Yamanaka, Masato et al.)

Disponível em http://www.quantumdiaries.org

 

O observatório X-ray Multi-Mirror Mission (XMM-Newton, da sigla em inglês), operado pela Agência Espacial Européia (ESA, na sigla em inglês)  orbita a Terra e procura sinais de raios-X que poderiam ser produzidos pela conversão desses áxions na região do campo magnético da Terra.

Figura 3 - Com base nos nossos resultados de XMM-Newton, parece plausível que o áxion (candidatos a partículas de matéria escura) seja efetivamente produzido no núcleo do Sol e, de fato se convertem em raios X ao entrarem em contato com o campo magnético da Terra.

Crédito da Figura: Universidade de Leicester

Disponível em: http://www.nature.com/news/physicists-see-potential-dark-matter-from-the-sun-1.16174


Experimentos no solo terrestre também estão sendo realizados para detectar os áxions, como o Axion Dark Matter Experiment (ADMX, na sigla em inglês).

Figura 4 - Físicos da Universidade de Washington, Leslie Rosenberg (à direita) e Gray Rybka, examinam o pacote de experiência como está posicionado acima do furo de um grande magneto supercondutor, dois componentes principais do detector são utilizados no experimento Axion Dark Matter. Os componentes foram montados e colocados dentro do magneto (inferior direito) para iniciar a fase de confinamento do detector. Leia mais em: http://phys.org/news/2013-11-shot-dark-detector.html#jCp

Crédito: Mary Levin / Universidade de Washington

Disponível em http://cdn.phys.org/newman/gfx/news/hires/2013/ashotintheda.jpg

 

O curioso é que o áxion é uma partícula prevista para resolver um problema específico da física de partículas que originalmente nada teve a ver com os modelos sobre a matéria escura, mas suas propriedades o torna um ótimo candidato à partícula de matéria escura.

  

Os WIMP’s

As chamadas weakly interacting massive particles (WIMP's, na sigla em inglês) são partículas que interagem somente gravitacionalmente e via interação fraca, a interação responsável por diversos tipos de processos e decaimentos atômicos – como o decaimento do nêutron livre –, e subatômicos. Para que não haja a interação eletromagnética, essas partículas devem ser necessariamente eletricamente neutras. No modelo padrão das partículas elementares, as únicas partículas com tais propriedades, sem serem mediadoras da interação, são os neutrinos. No entanto, como os neutrinos não são matéria escura fria, é preciso ir além do modelo padrão para se ter uma WIMP, como é o caso de modelos supersimétricos, que possuem partículas com tais características.

Os WIMP's, se de fato existem e formam a matéria escura, foram criados termicamente no Universo primordial, quando a temperatura era bem alta do que atualmente, conforme já descrito acima. Segundo o físico Johar Ashfaque, da Universidade de Liverpool, em um artigo originalmente publicado pelo site de divulgação científica The Conversation: “Os modelos que prevêem a existência das WIMP’s de uma maneira geral descrevem que em uma fração de segundo após o Big Bang o universo estava tão quente que novas partículas e antipartículas estavam sendo criadas e destruídas a todo o momento. Conforme o universo se expandia, ele esfriava estas partículas e como conseqüência elas não eram mais criadas, e, eventualmente, as sobras estavam sendo aniquilada através dos processos de decaimentos, limpando o universo desses estados exóticos. Apenas a existência de uma partícula estável que esteja interagindo através da interação fraca poderia agir sobre essas sobras e explicar a densidade de matéria que observamos atualmente no Universo.”

Apresentamos à seguir algumas extensões do modelo padrão das partículas elementares que possuem em seu espectro WIMP’s candidatos à matéria escura:

  • Supersimetria. Em algumas teorias supersimétricas, como o modelo padrão supersimétrico mínimo (conhecido pela sigla MSSM no inglês), existem partículas que são parceiras das partículas ordinárias e que são estáveis, as chamadas partículas supersimétricas mais leves (LSP, na sigla em inglês), ou possuem um tempo de decaimento muito grande, o que significa que "vivem" por muito tempo antes de desintegrar em outras partículas. Dependendo de modelos específicos, são candidatos à WIMP's:
    • O neutralino mais leve. O MSSM possui quatro deles, mas somente o mais leve é estável.
    • Sneutrinos. No MSSM, vínculos experimentais excluem os sneutrinos como candidatos a WIMP's, mas em teorias supersimétricas mais complexas eles não estão descartados.
    • Gravitino. Em teorias supersimétricas inspiradas em teorias da supergravidade, o gravitino pode ter uma massa bem pequena e portanto ser a partícula supersimétrica mais leve.

Assim como os áxios, modelos supersimétricos não foram propostos para resolver o problema da matéria escura.  

 

  • Dimensões extras. Diversos modelos teóricos sugerem que o nosso universo pode ter mais dimensões espaciais do que as três que estamos familiarizados. Existem vários modelos de dimensões extras, sendo que as diferenças básicas estão na característica dessas dimensões espaciais extras e sobre a acessibilidade das partículas ordinárias do modelo padrão a elas. Nessas teorias, os campos das partículas que se propagam em dimensões extras possuem uma série de ressonâncias no mundo tridimensional, chamadas de torres de Kaluza-Klein, ou simplesmente torres de KK. No modelo conhecido como Dimensões Extras Universais (UED's, na sigla em inglês), o mais leve dos KK's pode ser uma WIMP.

     

Embora atualmente os áxions e os WIMP's estão entre os mais promissores candidatos à partícula de matéria escura, ainda há uma infinidade de outros candidatos possíveis. À medida que novas extensões ao modelo padrão das partículas elementares são propostas, há a possibilidade de aparecerem mais candidatos à matéria escura.
Afinal, como saber se uma partícula candidata à matéria escura é uma boa candidata? Para responder a esta pergunta, Marco Taoso, Gianfranco Bertone e Antonio Masiero propuseram um teste com as seguintes perguntas:
  1. Ela produz uma densidade de relíquia apropriada?
  2. Ela é fria?
  3. Ela é neutra?
  4. Ela é consistente com o nucleosíntese na época do Big Bang?
  5. Ela deixa a evolução estelar inalterada?
  6. Ela é compatível com vínculos de auto-interações?
  7. Ela é consistente com as buscas diretas de matéria escura?
  8. Ela é compatível com os vínculos oriundos de raios gama?
  9. Ela é compatível com outros vínculos astrofísicos?
  10. Ela poderá ser sondada experimentalmente?
Uma boa candidata deveria responder sim a todas as dez perguntas acima.


Figura 5- Os 10 ítens testados para que uma paertícula candidata à matéria escura seja considerada viável.

Crédito da figura: Marc Schumann

Disponível em: http://www.physik.uzh.ch/lectures/astro/12/vorlesung/dmcandidates_ms.pdf


Tabela I: O desempenho dos testes dos candidatos selecionados à partícula de matéria escura. O símbolo  é usado quando os candidatos satisfazem o requisito correspondente, e é acompanhada por um símbolo ! no caso em que existe experimentos ocorrendo ou previstos para um futuro próximo para sondar uma porção significativa de espaço de parâmetros do candidato. Se a exigência pode ser satisfeita apenas em cenários menos naturais, ou não-padrão, ou no caso de tensão com os dados observacionais, o símbolo ~ é usado. Os candidatos com um símbolo ~ na última coluna, onde o resultado final é mostrado, ainda devem ser considerados viáveis. Se uma destas condições não for satisfeita, então o símbolo x é utilizado, e uma vez que estes requisitos são condições necessárias, a presença de um único × é suficiente para excluir a partícula como um candidato viável a partícula de matéria escura. O símbolo × significa que é possível conciliar um cenário com grávitons com a radiação cósmica de fundo com medição de fótons difusos se o modelo de dimensão extra universal for estendido com neutrinos de mão direita.

Crédito da figura: Bertone. G. Taoso, M. Masiero, A. Dark Matter Candidates: A Ten-Point Test

Disponível em: http://arxiv.org/abs/0711.4996


É interessante observar que das partículas presentes na Tabela I acima, somente os neutrinos do modelo padrão das partículas elementares tiveram a sua existência comprovada experimentalmente. O restante delas, por mais que emerjam de teorias bastante consistentes e atrativas, são por enquanto partículas meramente especulativas.

Contudo, da mesma forma que o bóson de Higgs permaneceu no campo especulativo por décadas, apesar dos dados experimentais de alta precisão já indicarem a sua existência (ou de algo similar), parece que a história tende a se repetir com a partícula da matéria escura. 
Com inúmeros experimentos dedicados à sua descoberta, é questão de tempo em detectá-la e suas propriedades serem bem estudadas, de forma que possamos identificar qual é essa partícula e qual a teoria por trás dela.   
   

 


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